segunda-feira, 20 de junho de 2011

Um Poeta Lírico _Eça de Queirós

"Como eu observei ao meu Jacinto, na cidade nunca se olham os astros por causa dos candieiros—que os ofuscam: e nunca se entra por isso numa completa comunhão com o universo. O homem nas capitais pertence à sua casa, ou se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu bairro. Tudo o isola e o separa da restante natureza—os prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso dos ónibus, a trama encarceradora da vida urbana... Mas que diferença, num cimo de monte, como Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós de pérto, rebrilhando, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença,{109} outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos... E é impossível não sentir uma solidariedade perfeita entre êsses imensos mundos e os nossos pobres corpos. Todos somos obra da mesma vontade. Todos vivemos da acção dessa vontade imanente. Todos, portanto, desde os Uranos até aos Jacintos, constituimos modos diversos de um ser único, e através das suas transformações somamos na mesma unidade. Não há idea mais consoladora do que esta—que eu, e tu, e aquele monte, e o sol que agora se esconde, somos moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim. Desde logo se sómem as responsabilidades torturantes do individualismo. ¿Que somos nós? Formas sem fôrça, que uma Fôrça impele. E há um descanso delicioso nesta certeza, mesmo fugitiva, de que se é o grão de pó irresponsável e passivo que vai levado no grande vento, ou a gota perdida na torrente! Jacinto concordava, sumido na sombra. Nem êle nem eu sabíamos os nomes dêsses astros admiráveis. Eu, por causa da maciça e indesbastável ignorância de bacharel, com que saí do ventre de Coímbra, minha mãe espiritual. Jacinto, porque na sua ponderosa biblioteca tinha trezentos e dezoito tratados sôbre astronomia! ¿Mas{110} que nos importava, de resto, que aquele astro alêm se chamasse Sírius e aquele outro Aldebaran? ¿Que lhes importava a êles que um de nós fôsse José e o outro Jacinto? Éramos formas transitórias do mesmo ser eterno—e em nós havia o mesmo Deus. E se êles tambêm assim o compreendiam, estávamos ali, nós à janela num casarão serrano, êles no seu maravilhoso infinito, perfazendo um acto sacrossanto, um perfeito acto de Graça—que era sentir conscientemente a nossa unidade, e realizar, durante um instante, na consciência, a nossa divinização."

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